O PODER DOS BANCOS E DOS AGIOTAS

13/02/2011 00:00

 

Filipe Schitino [1]


O Sistema Financeiro Nacional (SFN), regulamentado no artigo 192 da Constituição Federal, na forma da Lei n° 4.595/64, composto por instituições financeiras públicas e privadas, tem como princípio fundamental, a promoção do desenvolvimento equilibrado do Brasil, com escopo de servir aos interesses da coletividade, obrigando o Estado a implementar medidas de resguardo a função social descrita no texto constitucional.


Cumpre assinalar que as instituições financeiras, dentro do contexto em exame, são pessoas jurídicas de natureza pública ou privada, com atividade principal ou acessória de coleta, custódia de valores, intermediação, aplicação de recursos financeiros – próprios ou de terceiros –, empregando nas operações a moeda nacional ou estrangeira.


Por sua vez, as instituições financeiras públicas (oficiais), são bancos pertencentes ao Poder Público, sob a forma de empresa pública ou sociedade de economia mista, integrantes do Sistema Financeiros Nacional. As instituições financeiras privadas operam no mercado sob a forma de sociedade anônima, mediante emissão de ações nominativas com direito a voto, representando a totalidade do capital.


Impõe-se registrar que a política econômica agressiva do governo de fixação de excessivas taxas de juros, conduzida pelo Banco Central do Brasil, órgão gestor do sistema, majorou consideravelmente o lucro líquido dos bancos, possibilitando com este fato, a emissão de novas ações valorizadas no mercado, aumentando o capital social das instituições financeiras em detrimento ao cidadão, impossibilitado de honrar seus compromissos financeiros em razão de tamanha imoralidade econômica em nome do aumento arbitrário dos lucros.


Como se sabe, milhares de brasileiros estão na base da pirâmide, sofrendo as duras conseqüências da ciranda financeira, engendradas pelas instituições bancárias em flagrante desrespeito ao disposto no artigo 173, § 4° da Constituição Federal acerca das exceções ao princípio da livre iniciativa (liberdade de indústria, comércio, empresa e contrato), prevendo-se que a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e aumento arbitrário dos lucros, colocando-se em risco, em determinados casos, os pilares mais comezinhos a dignidade da pessoa humana com a sobreposição do direito de crédito em relação ao superendividamento da população na celebração de contratos bancários.


Presente esses conceitos, aduz a doutrina que o texto constitucional afirma a existência e legitimidade do poder econômico, afigurando-se lesivo, o exercício antissocial desse poder, pois “quando o poder econômico passa a ser usado com o propósito de impedir a iniciativa de outros, com a ação no campo econômico, ou quando o poder econômico passa a ser o fator concorrente para um aumento arbitrário de lucros do detentor do poder, o abuso fica manifesto.”[2]


Cabe observar, no entanto, que a Lei n° 8.884/94 em seu artigo 20, III, constitui como infração da ordem econômica, independente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados, o aumento arbitrário dos lucros, caracterizando-se o vocábulo na língua portuguesa como “injusto” e “sem regras” [3].


É que, em tal situação, as instituições financeiras ao implementar uma cobrança extorsiva de taxa de juros elevadas aos olhos do superendividamento dos cidadãos-consumidores, extrapolam no direito a cobertura de risco do credor ao celebrar o contrato bancário pela remuneração por uso da coisa ou quantia por parte do devedor, submetendo-os aos inúmeros encargos indevidos, exercendo arbitrariedade na obtenção de lucros.


Essa é a razão, pela qual, tratando-se de manifesta arbitrariedade na obtenção de lucros dos bancos e agiotas em sede de contratos bancários, mostra-se necessário, com escopo de proteção aos preceitos da Justiça Social – distribuição equânime das riquezas – a conseqüente aplicação do principio da efetividade como “o fenômeno social de obediência às normas jurídicas. Por serem passiveis de transgressão, as normas nem sempre alcançam plena efetividade. O índice de adesão às regras depende de vários fatores, sendo certo que a coercibilidade – força a serviço do Direito – atua como um dos estímulos da efetividade.”[4]


No mesmo sentido “a adequação do Direito ao fato, a racionalidade das fórmulas adotadas, o grau de justiça contido na solução preconizada para o problema social são também alguns motivos que induzem à obediência. A noção de efetividade compreende, ainda, a aplicação das normas pelos órgãos encarregados da administração da justiça: tribunais e administradores.”[5], encontra-se com os bens jurídicos tutelados no artigo 1° caput da Lei n° 8.884/94, dispondo sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos princípios constitucionais da liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.


Enfatizo, neste ponto, a gravidade das práticas bancárias atuais, impostas por agentes financeiros e agiotas aos consumidores, concernente a usura pecuniária, flexibilizada pelo Supremo Tribunal Federal, através da edição da Sumula n° 596, entendendo-se inaplicáveis as disposições do vetusto Decreto n° 22.626/33 em matéria de taxa de juros e outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, integrantes do Sistema Financeiro Nacional.


A Lei n° 1.521, de 26 de dezembro de 1951 – combate aos crimes contra a economia popular –, classifica como conduta típica, sob a luz do artigo 4°, alínea “a” – prática de usura pecuniária ou real – a cobrança de juros, comissões ou descontos percentuais, sobre dívidas em dinheiro, superiores à taxa permitida por lei – empréstimo sob penhor que seja privativo de instituição oficial de crédito – com pena de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.


Assim, diante da leitura do texto legal supra, identificamos no mercado, os tipos mais comuns de agiotagem, em manifesto prejuízo aos consumidores hipossuficientes, tais como, os praticados por bancos e “financeiras” ao conceder empréstimos de dinheiro a juros extorsivos acima do índice permitido por lei e àqueles “agiotas”, indivíduos que atuam na informalidade à margem do mercado financeiro legitimado e fiscalizado pelo Banco Central, que emprestam, na maioria das vezes, exigindo uma garantia real (imóvel, jóia, carro), abusando da vulnerabilidade econômica dos devedores, impondo um aumento arbitrário dos lucros, extrapolando o princípio constitucional da livre iniciativa, punível na forma do artigo 20, III da Lei n° 8.884/94.


É preciso esclarecer, por outro lado, que, não obstante a proteção do festejado Código de Defesa do Consumidor, a tutela dos direitos contra as práticas abusivas dos bancos e agiotas, mostra-se perfeitamente cabível o enquadramento dos casos as sanções previstas na Lei de Combate às Infrações contra a Ordem Econômica na forma dos artigos 1°, 15, 16 e 29:


“Art. 1° Esta Lei dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.”

 


“Art. 15. Esta Lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal.”

 


“Art. 16. As diversas formas de infração da ordem econômica implicam a responsabilidade da empresa e a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores, solidariamente.” (grifei)


“Art. 29. Os prejudicados, por si ou pelos legitimados do art. 82 da Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990, poderão ingressar em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação de praticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos, independente do processo administrativo, que não será suspenso em virtude do ajuizamento de ação.”


A questão central suscitada a partir da leitura dos artigos da Lei de Combate às Infrações contra a Ordem Econômica, supracitados, reside no fato de se responsabilizar objetivamente os bancos, individualmente e solidariamente, seus dirigentes e administradores, estendendo o enquadramento à norma jurídica em debate, aos “agiotas” informais não legitimados pelo BACEN, órgão de fiscalização do Sistema Financeiro Nacional, na condição de pessoa física do artigo 15 da Lei n° 8.884/94, que se abstenham de perpetrar condutas abusivas à ordem econômica, indenizando o consumidor lesado por perdas e danos.


É por essa razão, que o Excelentíssimo Senhor Presidente da República editou em 2001, a Medida Provisória de n° 2.172-32, reforçando os instrumentos legais de combate a especulação com empréstimos de dinheiro a margem do mercado financeiro, não reguladas pelas leis comerciais e de defesa e proteção ao consumidor, ou seja, contratos celebrados com vício de vontade, induzindo a erro o consumidor, encobrindo-se as vantagens superiores às admitidas por lei e praticadas no mercado regulado pelo BACEN, objetivando a garantia das dívidas de caráter usuário, conforme entendimento jurisprudencial do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:


“Direito civil, comercial e processual civil. Embargos de devedor à execução. Prática de agiotagem. Notas promissórias. Valor superior ao décuplo do salário mínimo. Inversão do ônus da prova. Verossimilhança não demonstrada. Prova exclusivamente testemunhal. Livre convencimento motivado. Cerceamento de defesa.

 


- Um elevado número de cidadãos encontra-se à margem do acesso ao crédito oferecido pelas instituições financeiras, o que os torna vulneráveis e sujeitos ao talante daqueles que comumente são chamados de agiotas.

 


- A edição da Medida Provisória n.º 2.172-32 teve como escopo coibir a especulação com empréstimos de dinheiro fora do âmbito das operações do mercado financeiro não reguladas pelas leis comerciais e de proteção ao consumidor, quando celebrados com vícios de vontade, isto é, quando dissimulem a exigência de vantagens patrimoniais superiores às admitidas em lei ou celebradas para garantir, ilicitamente, dívidas usurárias.

 


- Conquanto celebrados com manifesto vício de consentimento, porque ninguém procura voluntariamente o prejuízo, é sobremaneira penoso ao Poder Judiciário a desconstituição de tais ajustes diante da ausência de regramento processual específico, o que, a toda evidência, estimula a continuidade das práticas ilícitas.

 


- A inversão do ônus da prova autorizada pelos arts. 1º e 3º da MP n.º 2.172-32, que trata da nulidade dos atos de usura pecuniária, impõe acurada análise da ocorrência de requisito legal para seu deferimento: demonstração da verossimilhança da prática de agiotagem.

 

- É soberano o juiz em seu livre convencimento motivado ao examinar a necessidade da realização de provas requeridas pelas partes, desde que atento às circunstâncias do caso concreto e à imprescindível salvaguarda do contraditório.

 


- "O CPC veda a utilização da prova exclusivamente testemunhal com o objetivo de demonstrar a existência de contrato cujo valor seja superior a dez salários mínimos. No entanto, tal espécie de prova é admitida quando se pretende evidenciar peculiaridade ou circunstância do contrato, ainda que seu valor exceda esse montante. Precedentes" (REsp 470.534/SP).

 


- Deve, portanto, a interpretação do art.400 e ss. do CPC propiciar às vítimas da agiotagem a ampla dilação probatória para demonstrar a verossimilhança do ilícito, que permitirá a abertura da via da inversão do ônus da prova contemplada pela MP n.º 2.172-32.

 


- Assim, a despeito da ausência de mecanismos oficiais de combate à agiotagem, a Justiça encontrou um caminho para tutelar as vítimas de tal prática.

 

Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.


(REsp 722600/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/08/2005, DJ 29/08/2005 p. 342)” (grifei)


Este cenário, tendo em vista o arcabouço jurídico pátrio em defesa do consumidor, mostra, ainda assim, a fragilidade do sistema de coibição da “agiotagem” informal, que deixa aos poucos o caráter de informalidade, implantando, os envolvidos, uma estrutura sofisticada capaz de coagir, extorquir e induzir a erro as vítimas, valendo-se de sua vulnerabilidade num momento tão delicado para vida de qualquer ser humano, a pulverização do salário e bens em virtude de dívidas contraídas.


Portanto, é preciso refletir acerca desta perspectiva, à luz do princípio da razoabilidade e proporcionalidade, considerando que o princípio da dignidade da pessoa humana previsto no artigo 1°, inciso III da Constituição Federal se sobrepõe, em tema de superendividamento, a autonomia da vontade contratual – relação jurídica de direito pessoal – atrelada ao princípio constitucional da livre iniciativa, avençada entre consumidor e instituições financeiras e demais contratos tácitos de empréstimos celebrados por “agiotas” informais e sofisticados, em razão do grave desequilíbrio econômico-financeiro imposto aos consumidores que aderiram, por razões da vida, a ciranda da ruína financeira – bancos + juros + financeiras de mútuo + agiotas – salvaguardando o Judiciário e instituições fiscalizadoras, tais princípios protetivos do consumidor em face do poder dos bancos e agiotas na utilização dos mecanismos em estudo.


MELLO, Filipe Schitino Silva de. O Poder dos Bancos e dos Agiotas. Blog Advogado Filipe Schitino, Nova Friburgo, ano 2009. Disponível em:

 


[1] Advogado militante na cidade de Nova Friburgo/RJ. Bacharel em Direito pela Universidade Candido Mendes/Nova Friburgo.

[2] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 1998, pág. 769

[3] BUENO, Silveira. Minidicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: FTD, 2000, pág. 60.

[4] NADER, Paulo. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000, pág. 73.

[5] Ob Cit. pág. 73